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1911
Anita Malfatti frequenta, por um semestre, um curso de desenho de modelo vivo no Königlichen Kunstgewerbemuseum (Museu Real de Artes e Ofícios), administrado por um pintor de nome Busch. Nos arquivos do museu alemão, nada além dessas informações se encontram, como escreve a pesquisadora Stephanie Dahn Batista.
Naqueles anos, Schülerinnen finden keine Aufname (alunas não são admitidas) na Königlichen Akademischen Hochschule der Künste (Academia Real de Belas Artes ). Somente em 1919, após a queda da monarquia e de “protestos e petições”, alterou-se essa orientação da escola.
[Cf. Stephanie Dahn Batista, Die Bildnisse von 1910 bis 1925.
Magister, Philosophischen Fakultät zu Münster, 1999.] -
1911 c.
Anita Malfatti , possivelmente, frequenta outros cursos oferecidos pelo próprio Kunstgewerbemuseum, pois, em um de seus cadernos, veem-se anotações em alemão de desenho geométrico.
Arquivo. IEB-USP
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1911
Embora não haja, no arquivo da artista, informação precisas sobre a data de seus estudos, quer dessa ou de várias outras, supõe-se que, após frequentar o Kunstgewerbemuseum, Anita Malfatti começa a estudar no ateliê de Fritz Burger.
As aulas de Burger – artista que, segundo ela, “fazia pontilhismo como quem se apresenta num palco” – ocorriam na casa dele “fora de Berlim”.
De fato, em artigo escrito por Franz Servaes sobre “Fritz Burger”, consta que o artista possuía uma casa-ateliê em Zehlendorf-Klein-Machnow,
“distante uma hora de Berlim”.[Cf. Franz Servaes, “Fritz Burger”. Die Künst für Alle, 7/1917]
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1911-1912
Em uma de suas viagens feitas pela Alemanha, Anita Malfatti vai até Meissen (Mísnia ), cidade às margens do rio Elba. Há registro de que uma de suas pinturas, BECO DE RUA, exposta em sua primeira individual em São Paulo, 1914, possa ter sido feita nessa cidade.
É possível que, nessa viagem, Anita tenha ido até Dresden, cidade próxima à Meissen, visto que em seu artigo-depoimento intitulado “1917”, ela afirma voltar “diariamente ao Museu de Dresde”.
[Cf. Anita Malfatti. 1917. Revista RASM, SP, 1939]
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No texto “1917”, a artista prossegue com suas memórias:
“Em Berlim continuei a busca e comecei a desenhar. Desenhei seis meses dia e noite. Um belo dia fui com uma colega ver uma grande exposição de pintura moderna. Eram quadros grandes. Havia emprego de quilos de tinta e de todas as cores. Um jogo formidável. Uma confusão, um arrebatamento, cada acidente de forma pintado com todas as cores. O artista não havia tomado tempo para misturar as cores, o que para mim foi uma revelação e minha primeira descoberta. Pensei, o artista está certo. A luz do sol é composta de três cores primárias e quatro derivadas. Os objetos se acusam só quando saem da sombra, isto é, quando envolvidos na luz. Tudo é resultado da luz que os acusa, participando de todas as cores. Comecei a ver tudo acusado por todas as cores. Nada nesse mundo é incolor ou sem luz. Procurei o homem de todas as cores, Lovis Corinth, e dentro de uma semana comecei a trabalhar na aula desse professor. Comprei incontinente uma porção de tintas, e a festa começou. Continuava a ter medo da grande pintura como se tem medo de um cálculo integral”.
Anita Malfatti. 1917, Revista RASM, SP, 1939
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1912
Seguindo as memórias escritas pela artista – observando as telas e sem alterar as datas a elas atribuídas –, supõe-se que em 1912 Anita Malfatti começa a estudar com Lovis Corinth. Destaque-se, entretanto, que somente em 1913 o marchand Paul Cassirer organiza em Berlim uma exposição individual do “homem de todas as cores”.
Escreve Marta Rossetti que, no verão de 1912, Anita viaja, com as Shalders e as irmãs Tarboux, até Treseburg, distrito de Harz, Saxônia-Anhalt. Em agosto, com Lucy e Hermantina Shalders, Anita desce pelo rio Remo até Bruxelas. [Cf. MRB, p.67-68]
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“A conselho do mestre formamos um pequeno grupo de estudantes e fomos à cidade de Colônia (Köln), para ver uma grande exposição de quadros modernos franceses. Começamos com Delacroix e Manet, explicando o ponto de partida da nova descoberta. Depois toda a obra de Cézanne e Renoir. Em seguida a dos Fauvistas, terminando com as de Picasso.
O estopim já tinha mesmo pegado fogo. Compreendi que pintar, depois de absorvidas as primeiras bases estruturais, era o mesmo que fazer poesia, música. A Pintura, que é arte, deve ser livre, bela, completamente plástica, moldável para poder mostrar o caráter e a intenção da ideia que inspira o artista, emocionando-o ao ponto de realizar o Milagre: a obra de arte. Aliás, arte não é milagre, mas sim a própria natureza da vida. A Arte é um reflexo de Deus.”
Anita Malfatti. A chegada da arte moderna no Brasil. Datiloscrito [C. PESP, 1951]
Fundo AM - Arquivo, IEB-USP
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Como seus cadernos de desenho, os escritos-memórias de Anita Malfatti possibilitam poucas datações e outras referências precisas. No entanto, pode-se supor que a exposição referida pela artista em seu texto de 1951 seja a Internationale Kunstausstellung de 1912, significativa mostra de arte, montada pela Sonderbundes Westdeutscher Kunstfreunde und Künstler, em Colônia.
Essa exposição, que teve como coorganizador o importante marchand Alfred Flechtheim, contou com 634 obras de artistas de vários países que revolucionaram as artes naqueles anos. Entre eles destacam-se os franceses como Paul Cézanne, Paul Gauguin, Henri Matisse, Georges Braque, André Derain, Maurice de Vlaminck, o espanhol Pablo Picasso, e o holandês Vincent van Gogh, que teve mais de 120 trabalhos mostrados.
Embora essa seja a exposição que, na época, reuniu número significativo de artistas franceses e possibilitou uma visão de suas pesquisas do período, nela não foram destacadas obras de Delacroix e de Manet. Anita certamente viu as obras desses pintores, assim como as de Renoir, mas a partir de outras exposições. Aliás, é nesse período que várias mostras que procuravam evidenciar “o ponto de partida da nova descoberta” foram montadas na Alemanha e, evidentemente, em outros países europeus.
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Anita Malfatti escreve sobre seus três professores na Alemanha:
“Meus dois professores-artistas Fritz Burger e Lovis Corinth foram professores de arte, mas não de pintura, ou de técnicas, que Corinth desprezava porque, dizia ele, a preocupação da técnica destrói a inspiração. Os grandes artistas nunca são mesmo grandes professores ou explicadores de um ofício qualquer; esta parte é, geralmente, preenchida pela própria obra de arte que, com o correr dos séculos, torna-se a grande mestra muda que, sem interrupção, continua a iluminar povos ensinando a interpretação espiritual dos sentimentos e emoções. Meu grande professor de técnica de pintura, não de arte, foi Bishoff-Culm. Corinth não explicava a teoria pictórica das cores; para ele existia apenas o instinto e o gosto, que o levara às alturas a que atingiu. Não sabia dizer em palavras qual a regra que nos guia para achar o equilíbrio da composição, a origem da forma, ou, como Fritz Burger ensinava, o segredo da composição da cor. Foi este primeiro mestre, com suas teorias de subdivisão da cor, deixando espaços livres para que este espaço vazio, silencioso, forme a nota livre, igual, necessária para toda a harmonia, que me levou a fazer, durante diversos meses, centos de pequenas experiências de separações e misturas, para descobrir qual a regra que rege a harmonia das cores. O mesmo fiz com os espaços livres e os encerrados pela linha. O mesmo com as sombras.
Ai foi que procurei obter o máximo do efeito, no mínimo da forma e da cor. Nesta experiência não deve haver hesitações, dúvidas, arrependimentos ou fraquezas. Nesta arte a inspiração inicial deve ser conservada a todo o custo, seja sacrificando tempo, ou o que seja necessário.”
Anita Malfatti. A chegada da arte moderna no Brasil. Datiloscrito [C. PESP, 1951]
Fundo AM. Arquivo, IEB-USP -
1913
Lucy e Hermantina Shalders voltam ao Brasil. [Cf. MRB]
Anita Malfatti permanece em Berlim até início de 1914 e, antes de voltar para São Paulo, visita Paris:
“Em maio de 1914, antes de embarcar de regresso ao Brasil, passei 10 dias em Paris, segui um programa cuidadosamente elaborado pelos meus colegas. Com a ajuda desse programa vi em muito pouco tempo, grande número de obras de arte. Voltei ao Brasil completamente arrebatada pela beleza que a Europa me havia apresentado. Foi esta, pois, a preciosa semente, que mais tarde deu tão valioso fruto.
A Guerra arrebentou em fins de julho de 1914. Felizmente como já estava de regresso em maio, [fugi do] horror da guerra.”
Anita Malfatti. A Chegada da Arte Moderna no Brasil. Manuscrito [versão A]
Fundo AM. Arquivo, IEB-USP -
1914
Logo após seu retorno, a artista abre sua “Exposição de Estudos de Pintura Anita Malfatti”, na rua 15 de novembro, nº 26, 1º andar da Casa Mappin Stores.
Em seu caderno de anotações de geometria em alemão, encontra-se o “diário” de Anita Malfatti sobre essa sua primeira exposição. Nele a artista registra comentários dos visitantes, suas reações, a venda de algumas obras, como a aquarela ZULA e a gravura MOINHO.
Esses registros possibilitam reconhecer famílias próximas à de Bety Malfatti , artistas que viviam ou visitavam São Paulo, personalidades da época, tais como as ligadas aos jornais da cidade. Esses escritos ainda permitem entrever o meio artístico paulista da época, tanto assim que é a própria Anita Malfatti que escreve saber que “seria muito criticada”.
Mais ainda. A partir desse seu “diário”, pode-se observar não só estados de ânimo da artista, como também suas posições claras e firmes:
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“O que aconteceu de mais interessante durante os dias em que minha 1ª exposição de Estudos de Pintura esteve aberta
23 de maio – sábado
[...] Sr. Norfini foi muito gentil pois nos ajudou a pendurar os quadros para a sua melhor vantagem [...] Na última hora os quadros que estavam com Hugo não tinham chegado pois Tatá só os mandou no dia antes por encomenda e o carregar [carregador] não os pode retirar sem autorização de modos que no último momento mamãe não chegou em tempo para almoçar e eu me vesti voando e ainda fui trocar meus sapatos no Clarck mas cheguei no Mappin pouquinho antes das 13 h (hora da inauguração) mas lá ainda achei os cartazes todos e os números para enumerar os quadros não tinham sido colocados. [...] Bibi Penteado e uma traça de colegas da academia encheram a sala. [...] Mrs. Compton gostou muito assim como a Miss Vroheis e Miss Kennedy. As Villaboins falaram em cochichos e riram-se muito do estudo do meio-nu. [...] Maus Hehl também gostou muito, o que é de admirar. Mlle Jouvin quis comprar um trabalho logo que chegou, mas viu os preços e arrepiou carreira [...]. O d. Almeida e Brito, o caricaturista gostou das águas-fortes.
Voltamos para casa satisfeitas e cansadíssimas.”
Fundo AM. Arquivo, IEB-USP
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Caderno com anotações da 1º exposição de Anita Malfatti, 1914
Fundo AM. Arquivo, IEB-USP
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“28 de Maio – [...] O artigo que apareceu no Estado de hoje está muito bom e eu lhe sou muito agradecida mas preciso dizer que este pessoal tem-se mexido só depois do artigo de Bibi no Correio P. [Paulistano]”
“29 de maio - Dormi até tarde e levantei com dor de cabeça. O artigo do Estado em vez de me dar muito prazer me encabulou. Se me tivesse sido possível, eu não teria ido à exposição. Nunca estive tão desanimada!
O dia de hoje foi muitíssimo concorrido. Quase 50 pessoas visitaram a exposição.”
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Anita Malfatti envia requerimento solicitando o Pensionato Artístico de São Paulo, auxílio monetário que se destinava a artistas para que estudassem em outros países. Seu tio, George Krug, dispõe-se a falar com conhecidos:
“5ª feira - [...] No fim chegou Tio George e Nhonho e ficamos de fazer o requerimento e falar com Altino Arantes e Ramos de Azevedo amanhã (i. é, Titio ficou)”.
O Correio Paulistano de 11/6/1914 registra o pedido de Anita Malfatti do Pensionato Artístico.
A artista sabia, contudo, que seria quase impossível obtê-lo, como registra em seu caderno-diário. A pensão do Estado dependia da opinião do então deputado José de Freitas Valle, dono de uma chácara localizada na rua Domingos de Morais, a chamada Villa Kyrial, onde o político promovia reuniões artísticas.
Anita escreve em seu caderno-diário os comentários de Freitas Valle sobre os trabalhos dela então expostos:
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“30 de Maio foi sábado e dele só me lembro quando já no lusco-fusco apareceu Freitas Valle com todos seus satélites sendo os principais Zadig e Elpons. F. Valle entrou e logo a sala encheu-se de homens. Quando mamãe perguntou si ele gostava do retrato de Georgina diz ele – Minha sra., não se ofenda se sou franco mas este quadro está crivado de erros o desenho é fraco e é um carnaval de cores. Valor artístico não tem nenhum. Quando mamãe perguntou se apreciava a paisagem do Guarujá disse – “Como é que a sra. pode chamar-me a atenção para uma coisa tão insignificante como esta. Isto não tem valor nenhum e eu como conhecedor pois há 10 anos que me ocupo disto posso dar-lhe esta opinião! Achou como o Zadig o dissera no dia antes o retrato das crianças de d. Irene, esplêndido Ganz wunderbar psychologig [sic] enpfunden . Não veja nada disso. Gostou muitíssimo do retrato da Baby e quando mostramos os nus ele foi então da opinião de todos. Que estavam esplêndidos.
F. Valle está tão engosgitado [sic] de injeções de vaidade que estes satélites lhe aplicam todos os dias que ele mesmo cairia das nuvens se percebesse algum dia que realmente ele é um incompetente no sábado ele não exprimiu uma ideia nova. Só frisou o que o Zadig no dia anterior achava bom ou ruim e por cima ainda me chamou a atenção pela coincidência das opiniões.
Impagável o que estes todos de sábado acharam mais fraco no nu foi o torso e ventre e é este justamente o que Bischoff achou que estava melhor. Disse realmente que era o que eu tinha feito de melhor na minha vida - O único ponto fraco está no jogo das clavículas, mas isto nenhum deles com todas as fanfarronadas foi capaz de descobrir! Que pena tenho destes artistas que dependem do Freitas Valle para seu pão!... Adeus, liberdade e franqueza de opiniões.”
Fundo AM. Arquivo, IEB-USP
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Admirável a postura de Anita Malfatti relativamente àquele que era a principal voz do Pensionato Artístico do Estado de São Paulo, o já mencionado mecenas José de Freitas Valle.
Aliás, essa força de opinião da artista, que certamente sempre lhe dirigiu as atitudes, pode ser observada em sua correspondência com Mário de Andrade, do decênio de 1920 e seguintes.
Ainda quanto à visita do dono da a Villa Kyrial à exposição de Anita de 1914, após escutar e considerar seus comentários, conclui a artista:
“Duvido muitíssimo conseguir a pensão do estado!”
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Ainda no mesmo ano, Anita Malfatti segue para Nova Iorque, sem a “corte” do Pensionato, onde prossegue seus estudos artísticos até 1916.
Em conferência, relata suas lembranças dessa época:
“Ao chegar ao Brasil, minha família e meus amigos, eram de opinião que eu devia continuar meus estudos de pintura. Achavam meus quadros muito crus, mas, felizmente, muito fortes, o que prometia para mais tarde uma pintura suave, quando a técnica melhorasse. Pouco mais tarde, eu seguia para os Estados Unidos, em companhia de uma senhora Americana. Em plena guerra, viajei em navio inglês, camuflado, sempre perseguidos pelos torpedeiros alemães.”
Anita Malfatti. A chegada da arte moderna no Brasil. Datiloscrito [C. PESP, 1951]
Fundo AM. Arquivo, IEB-USP -
1915-1916
Segundo Marta Rossetti, Anita Malfatti frequenta aulas “de pintura, desenho e gravura com os professores George Brant Bridgman (1864 - 1943), Dimitri Romanoffsky (1887 - 1971) e Dodge na Arts Students League of New York”, como se lê na ficha de inscrição de Anita nesse estabelecimento, anos 1915-16. [Cf. MRB, p. 110]
No texto “1917”, republicado no periódico Dom Casmurro, RJ, 6/1/1940, Anita Malfatti escreve:
“Fui aos Estados Unidos, entrei numa academia para continuar os estudos, e que desilusão! O professor foi ficando com raiva de mim e eu dele, até que um dia a luz brilhou de novo. Uma colega me contou em surdina que havia um professor moderno, um grande filósofo incompreendido e que deixava os outros pintar à vontade.
Na mesma tarde procuramos o professor, claro. Não estava em Nova York, levara a classe para pintar numa ilha de pescadores e artistas na costa da Nova Inglaterra. Para lá nos transportamos dentro de alguns dias.”
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Em outro texto, Anita Malfatti novamente relembra o episódio do professor que “levara a classe para pintar numa ilha”, mas de modo diverso, escrevendo ter começado a estudar com Homer Boss* em Nova Iorque:
“Entrei na ‘Independent School of Art’ de Homer Boss. Quase mais filósofo que professor. [...]
Seguimos no verão para Monhegan Island perto da Terra do Labrador. Lá pintamos 4 meses no meio dos rochedos e da eterna neblina. Nosso atelier era um barracão de pescadores de bacalhau. O maior progresso que realizei na minha vida foi nesta ilha e nesta época de ambientes muito especiais.
Eu vivia encantada com a vida e com a pintura.”
[VER]: Anita Malfatti [Notas biográficas]. Manuscrito. Fundo AM. Arquivo, IEB-USP
Possivelmente, Anita viaja com colegas para ilha de Monhegan, estado de Maine, no verão de 1915, onde Boss oferecia classes de verão.
* Sobre o artista ver Susan S. Edell, Homer Boss: The Figure and the Land, Elvehjem Museum of Art, 1994
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Na conferência que Anita fez na Pinacoteca do Estado de São Paulo em 1951, a artista relembra aspectos da Ilha e da liberdade para pintar:
“No verão, Homer Boss, o professor, levava os alunos a uma ilha de pescadores da Nova Inglaterra, Monhegan Island. Os habitantes da ilha eram pescadores de bacalhau e criavam lagostas enormes. A ilha estava constantemente envolta em neblina, e a sereia do farol buzinando dia e noite, para proteger os navegantes dos perigos dos imensos rochedos que nos rodeavam. Sempre pintávamos ao ar livre, no meio do vento, envoltos em neblina, sem poder perceber se meio metro adiante havia algum despenhadeiro terrível. Trabalhávamos nessa ilha quase inacessível, rodeada de penhascos como os da Gruta da Imprensa no Rio de Janeiro. Por atelier tínhamos um barracão grande, que o Professor chegava durante o verão. Deixávamos nossos estudos, telas e bugigangas no atelier. Aos sábados havia grande exposição do trabalho feito durante a semana e crítica que durava toda a manhã. Tudo era discutido; o progresso se acentuava de semana para semana. À noite, reuníamo-nos para contar histórias; alguns cantavam, outros dançavam. Não discutíamos arte à noite. Descansávamos. Lá ficamos dois meses. Em setembro, conforme ordem do Professor, voltamos para a cidade e levamos dois dias para chegar em New York.”
Anita Malfatti. A chegada da arte moderna no Brasil. Datiloscrito [C. PESP, 1951]
Fundo AM. Arquivo, IEB-USP -
cartão postal [VER] Nessa época pinta, entre outras, a paisagem O FAROL, óleo s/ tela, 46,5 x 61 cm, hoje coleção Gilberto Chateaubriand, MAM-RJ.
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Nos EUA, Anita Malfatti faz, de acordo com seus escritos, alguns desenhos para revistas de moda, ainda hoje não localizáveis. Possivelmente, também desenha caricaturas. Pouco se conhece desses trabalhos dela, mas, “Ver Anita Malfatti” implica considerar a época – para que se evitem anacronias – , os documentos – entendendo-os como indícios – e, evidentemente, conhecer a variedade de traços de sua produção.
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Caderno de desenho de Anita Malfatti
Coleção de Artes Visuais, IEB-USP -
Caderno de desenho de Anita Malfatti
Coleção de Artes Visuais, IEB-USP -
Na Alemanha, Anita Malfatti inicia-se na gravura, prosseguindo seu aprendizado em Nova Iorque.
Extraordinário, pois nessa época, início do decênio de 1910, a arte da gravura em metal no Brasil era praticada em Liceus de Artes e Ofícios, não em escolas de Belas Artes, onde a “gravura” ensinada era a de medalhas e de pedras preciosas.
No Brasil, a arte de gravar o metal ou a madeira só começa a ser considerada como “arte maior” – como escrevem alguns teóricos –, após o decênio de 1930.
Embora a maior parte das placas gravadas pela artista não tenha relação com suas pinturas, óleo ou aquarela, ao menos duas de suas calcogravuras produzidas nos EUA indiciam essa simetria.
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Na conferência de 1951, na PESP, Anita Malfatti relata sobre a Independent School of Art, destacando nomes de artistas que por lá passaram e também descreve como funcionada esse atelier-escola:
“Nosso atelier era grande, escuro e sujo de tinta, como os de Paris. Entrava-se, saía-se e pagava-se quando e como dava jeito; quando a gente se lembrava de fazê-lo, ou tivesse disposição para isto. Havia uma gaveta mágica na mesa da secretaria. Essa gaveta nunca se fechava, não empobrecia e nem enriquecia. - Quando faltava o necessário para os alunos boêmios, a gavetinha ajudava mais um pouco ... pois ninguém nunca soube quem punha ou tirava dinheiro da gaveta. [...] Os boêmios viviam em perfeita felicidade naquela escola. Ninguém sabia quem era rico ou miserável. Só havia uma preocupação máxima: A Arte. O trabalho nunca era interrompido por horário fixo. Tínhamos muitas visitas. Alguns aproveitavam o modelo, coisa que nunca faltou em hora alguma, outros, escreviam num canto; qualquer pequena dançarina ensaiava uma composição de passos novos. Durante os três meses que Isadora Ducan alugou o Century Theatre em New York, seu irmão, Raymond, diversas vezes deu aulas ilustradas com coreografia na nossa escolinha. Alice Frank, que dirigia as alunas de Isadora, acompanhada pelas extraordinárias meninas e com Temple Duncan, que se tornou grande pianista, muito posavam para nós. Isadora quando dançava com as meninas nos ensaios do Century Theatre, que ela abriu para os estudantes de arte e artistas, nos encantava a tal ponto, que a magia dessa inspiração nunca me deixou completamente. Desenhávamos a tarde toda, incessantemente, na temporada de 1915-1916. Conhecemos Napiarkowska, muitos poetas e pintores modernos, refugiados da França, Juan Gris, cuja esposa era poetiza francesa muito conhecida [possivelmente Albert Gleizes, casado com a pintora e escritora Juliette Roche]; Marcel Duchamp. Estes artistas passavam parte do dia na escola, desenhavam ou pintavam quando tinham vontade.”
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1916
Anita embarca para o Brasil com vários desenhos de nus dessa época da Independent School of Art.
Entre os cadernos da artista um deles indicia nus femininos que podem ter sido feitos nesse ateliê-escola. No entanto, nada possibilita essa confirmação.
Por isso, a maior parte dos nus que hoje se conhece feitos nesses anos são masculinos:
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Ainda sobre a época dos Estados Unidos, escreve Anita Malfatti que, após retornar da ilha de pescadores da Nova Inglaterra, pintou:
“[...] então A Estudante Russa, O Homem Amarelo, O Japonês, A Mulher de Cabelos Verdes, e muitos outros quadros que foram vendidos ou desapareceram com o correr dos anos.”
Além dessas pinturas e dos desenhos, ela trouxe em sua bagagem vários trabalhos feitos a carvão e pastel, entre os quais O ESTUDO DO HOMEM, O HOMEM DAS SETE CORES e RITMO (TORSO).
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1916
Anita Malfatti deixa seus colegas de ateliê russos, franceses e norte-americanos, muitos dos quais artistas que contribuíram para as inovações artísticas daquele início do século XX, e retorna a São Paulo no ano das comemorações do Centenário do Ensino Artístico no Brasil, em 1916.
Não é desarrazoada, portanto, a decepção de seus familiares quando viram seus trabalhos:
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“Em Agosto de 1916 voltava eu ao Brasil, com uma carga de estudos e quadros. [...] Eram caixões de livros de arte, pastas cheias de desenhos, gravuras e quadros de todos os tamanhos, molduras e chassis. Minha família e os amigos estavam curiosos para ver os meus trabalhos. Mas, que efeito! Ficaram desapontados e tristes. Meu tio, Dr. George Krug, que tanto interesse teve na minha educação, ficou muito aborrecido. “Isto não é pintura”, dizia ele, são coisas dantescas.
Comecei pela primeira vez na minha vida a entristecer-me, pois estava certa de que meu trabalho era bom, pois tanto os modernos franceses, como americanos o haviam dito, espontaneamente, desinteressadamente. Só desejei esconder meus quadros, pois acharam mesmo que para me consolar, poderia pintar como quisesse. Eles estavam desconsolados, porque me queriam bem. Entretanto, eu sabia que aquela crítica não tinha fundamento, especialmente porque estava dentro de mim. Regime de uma técnica completamente emocional.”
Anita Malfatti. A chegada da arte moderna no Brasil. Datiloscrito. [C. PESP, 1951]
Fundo AM. Arquivo, IEB-USP -
Apesar do “desejo” de esconder os quadros, já no ano seguinte Anita envia a pintura LALIVE para a Comissão do XXIV Exposição Geral de Belas Artes, do Rio de Janeiro, obra que é aceita.
Essa mostra de arte coletiva era uma das raras organizadas no Brasil. Assim, Anita Malfatti expõe ao lado de, entre outros, artistas já premiados e considerados de importância: Antônio Parreiras, Antonio Rocco, Augusto Girardet, Baptista da Costa, Carlos Oswald, Celso Antônio, Edgard Parreiras, Georgina de Albuquerque, Guttmann Bicho, Helios Seelinger, Leopoldo Gotuzzo, Lucilio Albuquerque, Modestino Kanto, Modesto Brocos, Paulo Mazzuchelli, Raimundo Cela, Rodolfo Amoedo, Vicente Larocca.
Até o momento, não se localizou texto algum sobre esse salão do Rio de Janeiro que mencione o nome da artista. Todavia, sua tela não passou despercebida:
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A Revista da Semana publicou durante alguns anos charges sobre os “Salões” oficiais do Rio de Janeiro, as Exposições Gerais de Belas Artes. Na edição de 25/8/1917, entre os artistas destacados pelo chargista Raul Pederneiras no seu “Salão Cômico” estão os premiados Modestino Kanto e Antonio Rocco e a estreante Anita Malfatti, com LALIVE: [VER]
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A exposição do Saci , apoiada pelo jornal O Estado de S. Paulo, foi organizada após Monteiro Lobato ter realizado pesquisa sobre essa figura do folclore brasileiro: “um concurso consequente a um inquérito que está na memória de todos, estiveram expostos ao público vários quadros e esculturas onde, pela primeira vez na terra natal do Saci, foi o Saci guindado às regiões da arte.” Monteiro Lobato
Lobato defendia uma arte nacional, como alguns escritores e como o farão outros no decênio seguinte. Mas o autor não aceitava estrangeirismos, os quais entendia como moda e como efeitos que distorciam a natureza.
Cipicchia foi o vencedor dos prêmios do concurso do Saci. Mas Lobato ocupa-se da pintura exposta por Anita Malfatti, visto que a partir dela o escritor pode expor sua opinião contrária às artes modernas surgidas na Europa:
“A sra. Malfatti também deu sua contribuição em ismo. Um viandante e o seu cavalo, em pacato jornadear por uma estrada vermelha, degringolam-se numa crise de terror ao deparar-se-lhes pendente duma vara de bambu uma coisa do outro mundo. Degringola-se o cavaleiro, degringola-se o cavalo, tentando arrancar-se do pescoço, o qual estira-se longo como feito da melhor borracha do Pará. Gênero degringolismo. Como todos os quadros do gênero ismo, cubismo, futurismo, impressionismo, marinetismo, está ‘hors-concours’ ”.
[VER]: A exposição do Saci, Revista do Brasil, SP, n. 23, pp. 403-413
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1917-1918
Pouco depois da exposição do Saci, Anita abre sua “Exposição de Pintura Moderna” em São Paulo, na mesma rua Líbero Badaró.
Ainda que motivada por Di Cavalcanti e pelo jornalista Arnaldo Simões Pinto, a artista sabia que, apesar de suas obras serem estranhas ao meio paulistano da época, seu “trabalho era bom”, como escreve. Como artista moderna, Anita buscava formas novas, assim como cores que, harmônicas, expressassem algo distante das obras consagradas pelo ensino das academias de belas artes:
“Eu nunca havia imitado a ninguém; só esperava com alegria que surgisse, dentro da forma e da cor aparente, a mudança: eu pintava num diapasão diferente e era essa música da cor que me confortava e enriquecia minha vida.
Numa tarde de novembro apareceram em casa alguns jornalistas com o Dr. Cavalcanti e Arnaldo Simões Pinto. Foram eles que me entusiasmaram a fazer uma grande exposição, que eu não queria mais fazer, em virtude da opinião negativa dos que me rodeavam. Mais eu recalcitrava, mais eles insistiam.”
Anita Malfatti. A chegada da arte moderna no Brasil. Datiloscrito. [C. PESP, 1951]
Fundo AM. Arquivo, IEB-USP -
“O Conde de Lara cedeu-me uma grande sala térrea, num dos seus prédios, à rua Líbero Badaró. Em meados de dezembro de 1917, inaugurei a grande exposição 1917-18. A sala encheu-se e continuou cheia de pessoas até fins de Janeiro de 1918. A princípio foram eles muito bem aceitos e vendi, nos primeiros dias, oito quadros. Depois da primeira surpresa, acharam a pintura perfeitamente natural.”
Anita Malfatti. A chegada da arte moderna no Brasil. Datiloscrito [C. PESP, 1951]
Fundo AM. Arquivo, IEB-USP
De acordo com folheto da mostra , Anita Malfatti expôs 28 pinturas, figuras e paisagens, onze gravuras, cinco aquarelas e nove caricaturas e desenhos.
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“EXPOSIÇÃO DE PINTURA
A distinta pintora d. Anita Malfatti inaugurará hoje, às 14 horas, à rua Líbero Badaró, n. 11, a sua exposição de arte moderna, franqueada, por essa ocasião, ao público.
Ao ‘vernissage’ dessa exposição, realizada ontem, estiveram presentes vários artistas e representantes da imprensa.
Da arte da sra. d. Anita Malfatti, já pelo que ela tenta realizar, já pelo que de positivo em seus resultados nos apresenta, não se poderia dizer senão com simpatia. Não é, como se vê, ainda pelos trabalhos expostos, uma prova definitiva ou que ao menos só lhe empreste tal significação. Há, porém, no variado conjunto que constitui o ‘salão’, quadros aos quais não se poderá negar indiscutível talento e mesmo alguma originalidade.
Tentando do ‘Impressionismo’, deixando de lado certos moldes clássicos cuja banalidade, pela sua abundância nos artistas medíocres, já se tornaram verdadeiros ‘expedientes’ e ‘clichês’ obrigatórios, d. Anita Malfatti causará aos olhos apreciadores da antiga ‘paisagem’ alguma estranheza. Isto, porém, não vem ao caso. Que a distinta artista continue fazendo a sua arte moderna, procurado evoluir o sempre independente de sugestões.”
Correio Paulistano, SP, 13/12/1917
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Os artigos sobre a “Exposição de Pintura Moderna” de Anita Malfatti evidenciam o estranhamento que a mostra causa, não só pelo “aspecto original e bizarro” das obras, devido os “motivos” e a técnica, mas também pela “disposição” dos trabalhos no espaço, como escrevem.
Todavia, embora rotulem, no geral, sua obra como “impressionista”, os jornalistas evidenciam que a artista é moderna, distante, por assim dizer, dos compêndios de “moldes clássicos”.
Exatamente o que Monteiro Lobato quer para as artes plásticas, que se distancie dos compêndios, embora não aceite a deformação da natureza, pois a entende como desvario que só serve a “alguma” caricatura. Sequer Pedro Américo, como se sabe, de quem o escritor apreciava a tela Independência ou Morte, escapou de sua pena ácida.
Ao comentar a pintura Carioca, Lobato escreve que ela só o é no nome e, como esta, as demais obras de Américo que também são anteriores à Independência só seguiam compêndios. Os artistas, segundo o escritor, esquecem que “a eterna Bíblia é a Natureza, e só é capaz de frutos ótimos a arte que olha em derredor de si e toma homens e coisas como os vê e os sente”. [Revista do Brasil, SP, Anno I, 11/1916, pp. 256-269]
A crítica do escritor à exposição de Anita, se não era esperada era, ao menos, presumível: um mês antes, Lobato já havia evidenciado sua fúria em relação às modernidades, reduzindo-a a “ismos”, isto é, estrangeiras e deformadoras.
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Anita Malfatti comenta o artigo de Monteiro Lobato sobre sua exposição na sua conferência de 1951 :
“Qual não foi a minha surpresa quando apareceu o artigo crítico de Monteiro Lobato. ‘Paranoia ou Mistificação’. Meus primeiros aliados ficaram perplexos! Mostraram-me o artigo, esperando que eu me defendesse e assim confirmasse a primeira impressão que tiveram sobre aquela pintura. Influenciados pela corrente contrária, devolveram 5 dos meus quadros, que já havia sido adquiridos. Jornalistas, como o Di Cavalcanti, Oswald Andrade, Osvaldo Simões Pinto, Guilherme de Almeida e outros engrossavam a fila, cerrando fileiras ao redor desta exposição nova. O Pedrinho de Almeida um dos nossos quis certa vez destruir o sono e quase morreu nessa experiência.”
Anita Malfatti. A chegada da arte moderna no Brasil. Datiloscrito [C. PESP, 1951]
Fundo AM. Arquivo, IEB-USPQuatro anos depois dessa declaração na Pinacoteca do Estado, em resposta ao modo como ela “recebeu a controvérsia em torno dos seus quadros” da exposição de 1917-18, Anita afirma:
“Com muita satisfação. Achei que era natural aquilo. E mesmo necessário. Apenas não tomei aquilo tudo como uma revolução nem imaginei o que iria causar mais tarde. Apenas quando o movimento tomou conta da literatura, da música e das outras artes, em geral, foi que avaliei o que estava acontecendo.”
Tomei a liberdade de pintar a meu modo, A Gazeta, SP, 16/4/1955
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Qualquer discurso da artista importa, pois é memória e, como tal, faculta a seu autor liberdade considerável para eleger relações.
Na conferência de 1951, destaca a artista o que se confunde com a história estruturada ao longo dos anos, quando escritores acusavam Lobato de ser responsável pelo “recuo”, “fraqueza” de Anita Malfatti. Se considerados, no entanto, os trabalhos dela da época, isso não se verifica. Neles é possível observar pesquisas diversas das que experimentou na Alemanha e nos Estados Unidos, o que não implica “declínio” etc.
Já na entrevista à Gazeta, de 1955, a artista se posiciona diante da questão, entendendo como “natural” as reações adversas. De fato, ao se considerar a sua produção, evidencia-se que Anita sempre traçou o seu caminho a partir de suas ideias e pesquisas – o que ela chamava de "técnica totalmente emocional" –, mesmo quando seus “amigos” do decênio de 1920 a criticavam: é o que se lê em correspondência entre vários dos modernistas que se encontravam em Paris no início dos anos vinte.
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A ira de Monteiro Lobato evidencia-se em relação às artes que não se fixam na observação da natureza, ainda que condene compêndios que ensinam como registrá-la. Já no artigo que ele escreve um mês antes sobre a exposição do Saci, essa noção é evidenciada, assim como sua condenação aos diversos “ismos”, ideias que são novamente abordadas na crítica que escreve sobre a mostra de Anita Malfatti, intitulada “A propósito da Exposição Malfatti”, publicada no Estadinho, 20/12/1917:
“Todas as artes são regidas por princípios imutáveis, leis fundamentais que não dependem do tempo nem da latitude. As medidas de proporção e equilíbrio, na forma ou na cor, decorrem do que chamamos sentir. Quando as sensações do mundo externo transformam-se em impressões cerebrais, nós ‘sentimos’; para que sintamos de maneira diversa, cúbica ou futurista, é forçoso ou que a harmonia do universo sofra completa alteração, ou que o nosso cérebro esteja em ‘pane’ por virtude de alguma grave lesão. Enquanto a percepção sensorial se fizer normalmente no homem, através da porta comum dos cinco sentidos, um artista diante de um gato não poderá “sentir” senão um gato, e é falsa a ‘interpretação’ que do bichano fizer um ‘totó’, um escaravelho, um amontoado de cubos transparentes.” [VER]: A propósito da Exposição Malfatti
Seus artigos poderiam certamente ser contestados se houvessem, na época, movimentações artísticas, como as da Europa e as dos EUA, ou, caso escritores paulistas estivessem organizados, mesmo que sem programa definido, mas que defendessem a renovação das artes brasileiras, não obstante estarem com olhos voltados para a Europa. Isso ocorrerá logo no início do decênio seguinte, a partir de escritores paulistas que, aliás, eram e continuaram por tempos próximos a Monteiro Lobato.
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Mesmo após o texto de Monteiro Lobato, a exposição de 1917/18, de Anita Malfatti continua a ocupar espaços na imprensa: no dia seguinte à crítica, a artista vende uma tela, e em outros periódicos, os elogios prosseguem :
A revista A Vida Moderna publica artigo que defende Anita contra os que a censuram:
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“Cultivando uma arte adiantada e, por isso mesmo nem sempre acessível ao grande público, ainda assim não tem sido pequeno o sucesso de sua exposição, que é diariamente visitada por avultado número de artistas e amadores, tendo sido já adquirida uma boa cópia de trabalhos.
Filiada à mais moderna escola de pintura, a srta. Malfatti executa com uma largueza e uma liberdade inexcedíveis os seus trabalhos, manchando as paisagens a largas pinceladas violentas, com a segurança de quem se sente absolutamente à vontade na sua arte. Choca, por isso, às vezes, o observador – pouco afeito àquele gênero de pintura, – mas ninguém, ao fim de algum tempo de observação, deixa de reconhecer na expositora um formoso e original talento e, nos seus quadros, brilhantes qualidades de técnica, de observação e de colorido: pois só quem possui em alto grau essas qualidades é capaz de transportar para a tela aquela admirável Paisagem de Santo Amaro (n. 18), tão cheia de encantadora poesia e de tão belo colorido; aquela primorosa cabeça de Egípcia (n.9) ou a Lalive magnífica (n.1) tão admiráveis de cor e de frescura; só quem possui em alto grau essas qualidades, dizíamos, é capaz de se aventurar a pintar e a expor Ventania (n. 13), de uma técnica que não pode ser compreendida senão pelos adeptos de sua arte; O Homem amarelo, de colorido tão cru e tão violento, embora bem desenhado e excelente de pose [...]
Talvez sejamos injustos nas observações que aqui ficam, mas, a arte cada um a compreende a seu modo, cada um a sente de acordo com o seu temperamento; e a arte da Srta. Malfatti, se, não raro, nos fala à alma e consegue transmitir-nos um bocado de emoção e de sonho, também às vezes se nos apresenta num terreno diametralmente oposto àquele de onde nos é dado observar e sentir a natureza.”
A Vida Moderna, SP, 27/12/1917
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Em 10 de janeiro de 1918 encerra-se a exposição de Anita Malfatti. No dia seguinte, é publicado artigo de Oswald de Andrade no Jornal do Comércio que também defende a artista.
O redator do artigo d´A Vida Moderna, defendeu a ideia de que “a arte cada um a compreende a seu modo”. Mais articulado que ele, Oswald monta a defesa da artista a partir da noção de que na “arte, a realidade na ilusão é o que todos procuram”. Na pintura PAISAGEM SANTO AMARO, há, para o escritor, “evocação trágica e grandiosa da terra brasileira”. Oswald vê a obra da artista de modo oposto ao de seu colega Monteiro Lobato, que nada via de nacional na pintura de Anita.
[Jornal do Brasil, 1917]
Fundo AM. Arquivo, IEB-USP -
“Exigiria longos artigos discutir-se a sua complicada personalidade artística e o seu precioso valor de temperamento. Numa pequena nota cabe apenas o aplauso a quem se arroja a expor no nosso pequeno mundo de arte pintura tão pessoal e tão moderna.
Possuidora de uma alta consciência do que faz, levada por um notável instinto para a notável eleição dos seus assuntos e da sua maneira, a brilhante artista não temeu levantar com seus cinquenta trabalhos as mais irritadas opiniões e as mais contrariantes hostilidades. Era natural que elas surgissem no acanhamento da nossa vida artística. A impressão inicial que produzem os seus quadros é de originalidade e de diferente visão. As suas telas chocam o preconceito fotográfico que geralmente se leva no espírito para as nossas exposições de pintura. A sua arte é a negação da cópia, a ojeriza da oleografia.
Diante disso, surgem desencontrados comentários e críticas exacerbadas. No entanto, um pouco de reflexão desfaria, sem dúvida, as mais severas atitudes. Na arte, a realidade na ilusão é o que todos procuram. E os naturalistas mais perfeitos são os que melhor conseguem iludir. Anita Malfatti é um temperamento nervoso e uma intelectualidade apurada, a serviço de seu século. A ilusão que ela constrói é particularmente comovida, é individual e forte e carrega consigo as próprias virtudes e os próprios defeitos da artista.
Onde está a realidade, perguntarão, nos trabalhos de extravagante impressão que ela expõe?
A realidade existe mesmo nos mais fantásticos arrojos criadores e é isso justamente o que os salva.
A realidade existe, estupenda, por exemplo, na liberdade com que se enquadram na tela as figuras número 11 e número 1; existe, impressionante e perturbadora, na evocação trágica e grandiosa da terra brasileira que é o quadro 17; existe, ainda, sutil e graciosa, nas fantasias e estudos que enchem a exposição.
A distinta artista conseguiu, para o meio, um bom proveito, agitou-o, tirou-o da sua tradicional lerdeza de comentários e a nós deu uma das mais profundas impressões de boa arte.”
Oswald de Andrade, Jornal do Comércio, SP, 11/1/1918
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Nos jornais da época, não há registro de batidas de bastões, nem de devoluções de obras. Anita Malfatti tampouco saiu de cena, certamente apoiada por Di Cavalcanti, Arnaldo Simões Pinto e Guilherme de Almeida.
Já no mês de encerramento de sua exposição, um desenho da artista é impresso em periódico da cidade. No mês seguinte, outro desenho dela figura na capa de revista.
A revista Panóplia, SP, de janeiro de 1918, não por acaso imprime sua gravura Outono após do artigo “Arte Regional...”. As reticências do título do artigo implicam à oposição àqueles que, como Lobato, defendem a arte regional e nacionalista. Homero Prates, autor do artigo, critica veementemente os que advogam por essa concepção de arte, reduzida à valorização de “tudo que é nosso”, pois, como escreve, “assim, restringem de tal maneira o nosso modo de ver o mundo, de interpretar a vida, como se o universo não fosse além de Mato Grosso!” Segundo o poeta, então um dos diretores da revista, “Não é possível existir o nacionalismo em grande Arte. Nunca houve nem haverá isso”.
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1918-1919
Em agosto de 1918, Anita Malfatti participa novamente da Exposição Geral de Belas Artes do Rio de Janeiro, agora o XXV “Salão”, montado na ENBA.
No ano seguinte, um trabalho dela é aceito para a XXVI Exposição Geral, seção de pintura, em cujo catálogo lê-se: “Anita Malfatti. Natural de S. Paulo. Discípula das Escolas de Belas Artes da Europa, dos Estados Unidos e de Pedro Alexandrino”.
Já na primeira exposição de Anita Malfatti, de 1914, o pintor Pedro Alexandrino aconselha que ela volte para a Europa devido ao gosto local [Cf. caderno-diário da artista. Fundo AM. Arquivo, IEB-USP].
Por volta de 1919, certamente por encontrar poucas opções em São Paulo, Anita passa a frequentar, por vezes, o ateliê de Alexandrino. Todavia, anos depois, o fato de estar registrado no catálogo desse “Salão” de 1919 que ela era sua “discípula”, serviu para que muitos concluíssem que os estudos que ela fazia no estúdio do pintor fosse seu retraimento ou seu retrocesso. Mas não só: a partir desse catálogo Anita também ganhou em seu curriculum “Escolas de Belas Artes”, o que ela nunca frequentou, no sentido que hoje as entendemos.
Anita Malfatti exercita-se e expõe onde pode naquela São Paulo dos anos de 1910: a cidade não tinha escola de Belas Artes, não promovia exposições coletivas como as anuais do Rio de Janeiro e, para se realizar mostras individuais, os artistas, em geral, ocupavam salas em edifícios no centro da cidade. Exatamente o que Anita faz em 1914, 1917/18 e no próximo ano, 1920, quando monta nova exposição individual:
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1920
Mesmo após quase três anos, os articulistas retomam a exposição de 1917/18, quer para indicá-la como primária, quer para elogiar a coragem de Anita Malfatti, sua “tenacidade”. Mas, no geral, os poucos textos que tratam da exposição de 1920* destacam a “evolução”, o “progresso” da artista. Avaliam que há, então, “um espírito mais equilibrado”, “uma melhor compreensão artística da natureza”, ou... indicam o “talento artístico feminino” de Anita.
A revista A Cigarra que, entre seus colaboradores contava com Guilherme de Almeida, Monteiro Lobato, Oswald de Andrade e Menotti del Picchia, assim como o Jornal do Comércio, para o qual Raul Polillo escrevia sobre arte, publicam textos sobre a mostra de Anita destacando que ela não mais apresenta obras como as das exposições anteriores.
Trata-se de uma curiosa memória, em diferentes acepções. Embora os articulistas afirmam relembrar o que foi exposto em 1917, ano que grafam em geral como 1916, eles não lembram que ONDA [VER] e LALIVE [VER] também estavam na mostra em 1917/18 e, CABEÇA DE VELHO [VER], destacada em crítica, estava na exposição de 1914.
* Na documentação supérstite da artista localiza-se apenas o convite dessa exposição. Os títulos das obras expostas foram coligidos em periódicos.
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“Está despertando vivo interesse no espírito do nosso público a bela exposição de pintura realizada pela distinta senhorita Anita C. Malfatti, instalada no salão do Club Comercial, [...]
Realmente, o atual certame muito se distingue dos outros que a autora abriu nesta Capital, já pela revelação de um espírito mais equilibrado, já por uma melhor compreensão artística da natureza e pelo desembaraço com que a artista desenvolve todos os seus temas pictóricos.
Sem dúvida, persistem ainda, embora levemente e apenas em alguns dos trabalhos agora expostos, algumas influências estranhas a que todo o artista está sujeito. Delas, porém, a senhorita Malfatti já se vai libertando galhardamente como facilmente se pode deduzir do exame de alguns dos seus melhores quadros, como Toilette, Lago Sereno, Bambu’s, Roupas ao vento e outros.
A tela Cabeça de Velho, (fora do catálogo), é uma das boas revelações deste certame. Há ali, é certo, repetições de colorido; mesmo apesar disso, as cores e as luzes coloridas se contrastam muito bem, produzindo sem esforço aquela imaterialidade de tintas que é indispensável em uma boa obra de arte, e que se observa como nota predominante nas telas dos bons autores contemporâneos. Este trabalho não está e nem deve ser acabado, mas assim mesmo já recomenda muito a sua autora.
Na Florista, o traço é mais nervoso, mais seguro, e obedece a um golpe de vista bastante audaz; o colorido é forte, não revela hesitações nem preâmbulos convencionais por parte da artista que a executou; as tintas quentes se harmonizam com facilidade, mesmo com espontaneidade, e a expressão da figura tem uma nota característica muito individual e, portanto, muito sincera, o que já não é pouco para quem como a senhorita Malfatti, não possui a experiência que só pode vir com os anos.
Onda também é uma boa impressão, muito movimentada, com uma alternativa de luzes e de cores sugestivas e bem dispostas.”
Raul Polillo. Jornal do Comércio, SP, [25/11/1920]
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“No amplo e elevado salão do Club Comercial [...], a distinta pintora paulista Anita Malfatti apresenta ao público uma valiosa exposição de cinquenta e três telas de sua lavra. Este fato, por si só, é motivo de jubilo para S. Paulo, porque no mundo feminino não são comum certames artísticos dessa ordem. Uma moça paulista, pois, proporciona ao público culto desta cidade um acontecimento pouco vulgar, qual seja o de uma artista-pintora, de invejável talento, expondo publicamente seus trabalhos.
É certo que não é a primeira vez que o faz: há uns três anos também o fez, provocando pela audácia de seu talento artístico, numa demonstração franca de ataque à rotina e de contradição à timidez – tão próprias de quem não age nem pensa por si – um zum-zum composto das aprovações dos mais entendidos e das críticas contrárias dos que não compreendem processos novos na Arte, modificadores da velha escola de linhas medidas e pinceladas homeopáticas. Todos, porém, num ponto estiveram em unanime acordo: o talento, a capacidade artística de Anita Malfatti era verdadeiramente alto e notável; excepcional, enfim.
Hoje, a sua exposição revela, de maneira surpreendente, aos olhos de quantos a têm acompanhado nas sua ascendente vida de artista, pertinaz da conquista de justos triunfos, um progresso que a todos admira e empolga. As suas telas de hoje lhe redobram a merecida consagração de seu talento. Vê-las, admirá-las é dever do público paulista. Adquirir alguns de seus quadros é dever dos que o podem fazer, como prêmio e aplausos ao esforço da distinta moça paulista, que, sozinha, fazendo das dificuldades vencidas pelo seu trabalho e tenacidade novas forças, colocou-se no mundo artístico de S. Paulo no mesmo patamar em que pontificam, sem discussão possível os verdadeiros talentos artísticos femininos.
Na música, é Guiomar Novaes rainha festejada; na pintura, não é favor nenhum afirmar que a coroa pertence par droit de conquête a Anita Malfatti.”
A.M. "Exposição de Pintura". Diário Popular, SP, [26/11/1920]
Fundo AM. Arquivo, IEB-USP -
A crítica desse decênio de 1920 e do seguinte – raras, aliás –, privilegia como critério de avaliação da arte o exame de um princípio ou de uma ideia. Portanto, quando há algum texto sobre o assunto, ele tende a ser condenatório ou defensor, de modo direto. Quanto aos registros das exposições – hábito nesses decênios e nos dois seguintes –, estes destacam os visitantes da mostra e as obras adquiridas.
Não é diferente relativamente à exposição de Anita Malfatti de 1920. O Correio Paulistano de 19/11 anota que estiveram presentes na inauguração, entre outros, Hugo Adami, V. Brecheret, Antonio Rocco, Ricardo Cipicchia, Nicola Rollo, Sylvio Whitaker Penteado. O publicado no dia 23/11 informa que foram adquiridas as telas JARDIM DA LUZ e A CASA VELHA; dois dias depois, o mesmo periódico anota que a tela MENINO GILBERTO foi vendida.
São numerosos os registros, para a época, embora poucos os textos que procuram analisar a exposição da artista. Mas, cabe a Menotti del Picchia, no artigo “Uma palestra de arte” [Cf. Helios, Correio Paulistano, SP, 29/11/1920], iniciar o ataque nominal a Monteiro Lobato nesse ano, o que se reverberará:
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“Monteiro Lobato - estilo navalha, estilo clava, estilo pol [sic] – tem no diabólico prestigio da sua pena um máximo poder de sedução às vezes perigoso. Com tais artimanhas tece os seus períodos, que o nosso espírito neles se enrosca, se prende; é como visgo para pássaros inexpertos; é como um aranhol para mosquitos incautos ...
Caí, a respeito de Anita Malfatti, no visgo do seu estilo e, preso por ele, julguei, com o critério de Lobato, sem ver todas as obras da artista, toda a arte dela.
Comigo, milhares de paulistas, aprioristicamente, assim julgaram essa mulher singular, que, quando não tivesse outro mérito, teria o de haver rompido, com a audácia de arte independente e nova, a nossa sonolência de retardatários e paralíticos da pintura.
Quando, pois, subi as escadas do Club Comercial para ver as pinturas da Malfatti, esperava ver ginásticas de monos em árvores de pedra, maxixes de elefantes em tapetes da Pérsia, galopes de seriemas, valsas macabras de [...], agonia mística do [...] e outros delírios dos cubistas e dos futuristas da vanguarda.
Não vi nada disso. Quando defrontei as telas de Anita, comecei a matutar se a acidez de Lobato era justa, e acabei achando-o cruel o exagerado na formidável catilinária que propagou na nossa brilhante patrícia.
Pensei que seria injusto não colocar uma voz de defesa ao lado dessa interessante pintora, que, a meu ver, entre as telas que expõe agora, nos mostra algumas que, em qualquer outro centro, consagrariam o nome de um pintor moderno.
Não vi a primeira exposição da Malfatti; não posso, pois, julgar se nessa ocasião lhe cabia a descalçadeira; entretanto, o que hoje apresenta me leva à convicção firme de que, por mais bizarras que fossem suas obras, não poderiam ser ausentes de qualidades e sérias virtudes.
Creio mesmo que Lobato, diante desta segunda exposição, não teria a impiedade e o ardor iconoclasta que teve na primeira. Lobato é um grande artista com fama de mau pintor, o que, portanto, não lhe exclui um alto critério estético, capaz de discernir o bem do mal na pintura a óleo, como Eva o discerniu na vida, depois de devorada a fatal maçã da história...
Talvez em Malfatti o pai espiritual do ‘Jeca’ quisesse ferir a casta arrelienta e delirante dos futuristas. Mas, positivamente, foi injusto e cruel.” -