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1934
Em 4/10/1933, o interventor federal no Estado de São Paulo, Armando de Salles Oliveira, aprova, a partir do Decreto 6.111, o Regulamento do Salão Paulista de Belas Artes, elaborado pelo Conselho de Orientação Artística, prevendo a organização do 1º Salão para dezembro de 1933.
Eram membros do referido Conselho: Christiano Altenfelder Silva, Olivia Guedes Penteado, Alexandre de Albuquerque, Carlos A. Gomes Cardim Filho, José Wasth Rodrigues e José A Gonçalves.
Embora na pequena São Paulo já ocorressem “manifestações” artísticas modernas, a exemplo das palestra promovidas pela SPAM, como a de Anita Malfatti, vigorava nessa cidade, assim como na do Rio de Janeiro, uma arte que ainda tinha a natureza como referente. Também as movimentações artísticas dessa época eram bastante acanhadas. Não é de se estranhar, portanto, quando da organização do Salão Paulista de Belas Artes, ler-se artigos como o assinado por H. Bayard:
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Surgem outras críticas ao Salão de Belas Artes, como a que se lê no mesmo Correio de S. Paulo, de 26/12/1933, que já pergunta como seriam distribuídos os prêmios. Na época, noticiava-se que a premiação no Salão não iria fazer distinção entre os artistas consagrados e os novos.
Independentemente da posição dos torcedores e dos organizadores do 1º Salão Paulista, ele deveria ser inaugurado em dezembro de 1933, para seguir o Decreto n° 5.361, de 28/1/1932. Todavia, no Correio de S. Paulo, SP, 11/12/1933, lê-se que, por questões de reforma, o 1º Salão Oficial da cidade seria inaugurado na rua Onze de Agosto, local onde se situava a Escola de Belas Artes e a Pinacoteca , somente em 25/1/1934.
Curiosa coincidência entre a nova data da inauguração do Salão e o aniversário da cidade de São Paulo. Assim, mesmo antes da divulgação da “reforma”, organiza-se o cartaz da mostra a partir do brasão da cidade e, no início de 1934, não raramente estampa-se o anúncio no Correio de S. Paulo:
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Aliás, 25 de janeiro será a data de inauguração de outros Salões Paulistas.
Como muitos artistas da capital, Anita Malfatti participa dessa exposição que inaugura os salões oficiais em São Paulo.
Sobre os dois retratos que a pintora expõe nessa mostra, escreve articulista do jornal Correio de S. Paulo:
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1935
Em janeiro de 1935 é indicado o júri de premiação do II Salão Paulista de Belas Artes, sendo o de pintura composto por J. Wasth Rodrigues, Marques Campão e Oscar Pereira da Silva. [Cf. Correio Paulistano, SP, 18/1/1935]
Este Salão, costumeiramente dito “acadêmico”, na verdade é local onde expõem artistas de diferentes tendências, visto que não há outro salão oficial na cidade.
Anita Malfatti novamente participa dessa mostra coletiva.
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Na seção “Chronicas sobre o Salão”, do Correio Paulistano, o articulista, que assina M.F., escreve sobre Anita Malfatti:
“A sra. Malfatti tem a seu favor antes de tudo uma compreensão pessoal da pintura. Suas figuras se destacam e têm afinidades entre si. O maior elogio que eu lhe podia tecer era dizer que seus trabalhos dispensam, para revelarem a autora, a própria assinatura. A pintura de Anita Malfatti é como aqueles artigos de Humberto de Campos ou Medeiros e Albuquerque: podiam deixar de trazer por baixo o nome do autor que a gente logo reconheceria, pelo estilo e pelas considerações...”
Correio de S. Paulo, SP, 12/2/1935
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1935
Ao lado de Nair Mesquita, Aristides de Basile, maestro Martinez Grau, Anita Malfatti é eleita membro da comissão executiva do “Carnaval de S. Paulo dos Artistas”, oficializado pela prefeitura da cidade,. [Cf. Correio de S. Paulo, SP, 19/1/1935]
Nesse mesmo dia, em outra reunião, os artistas foram convidados a apresentarem projetos para a decoração do baile. [idem]
Dias depois, o mesmo periódico divulga os nomes dos pintores e escultores que ficaram responsáveis pela ornamentação do local:
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Além da decoração do carnaval dos Artistas que Anita Malfatti faz ao lado de Hugo Adami, Vittorio Gobbis, Quirino da Silva, entre outros, a artista também desenho a capa do folheto temático do Baile dos Artistas: “do fundo do mar à estratosfera”:
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Em junho de 1935, o Correio de S. Paulo anuncia que, em breve, será inaugurada uma exposição que a Sala de Arte organiza, que será no salão de chá da Casa Alemã. Em 22 de junho, alguns pintores e escultores já haviam se inscrito para participar da mostra, entre os quais, Anita Malfatti.
A Sala de Arte foi fundada após a extinção da SPAM e tornou-se herdeira do “patrimônio” da referida Sociedade. Tanto assim que, para relembrar aquela agremiação, na posse da diretoria dessa nova sociedade artística, em janeiro de 1935, é anunciado que foi instituído o “Prêmio SPAM”.
A diretoria da Sala de Arte, instalada no Clube Comercial, na rua Líbero Badaró, foi constituída por:
Presidente, Clovis Martins de Camargo; vice-presidente, Nair Mesquita; tesoureiro, José Wasth Rodrigues; segunda-tesoureira, Tarsila do Amaral; secretário, Carlos Pinto Alves; segunda secretária, Dinorá de Carvalho. [Cf. Correio Paulistano, SP, 12/1/1935]
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Após realizar algumas atividades em sua sede, em abril desse ano, a Sala de Arte faz uma campanha para o ingresso de novos sócios e imprime seu programa em jornal da cidade:
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Em meados do decênio de 1930 surgem, como a Sala de Arte, outros grupos que procuram movimentar a “vida artística” de São Paulo, entre os quais o Grupo Almeida Júnior:
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O grupo Quarteirão, um clube de artistas modernos de São Paulo, certamente de curta duração, teve, entre seus integrantes, artistas e jornalistas: Anita Malfatti, Victor Brecheret, Oswald e Mário de Andrade etc.
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Em novembro de 1935, Anita Malfatti monta exposição individual na rua Quintino Bocaiuva, optando por mostrar algumas telas feitas em Paris, MOÇA DE AZUL, INTERIOR DE MÔNACO, retratos pintados no Brasil, OSWALD DE ANDRADE FILHO e, entre outras, pinturas que, segundo afirma em entrevista a um jornal da época, lembram “afrescos de Pompeia”. [(Diário da Noite, 4/11/1935) Fundo AM. Arquivo, IEB-USP] Neste sentido, a artista expõe quadros que são pintados com fundos lisos, monocromáticos e com ornamentos, como ANJO DA ANUNCIAÇÃO, VIRGEM MARIA e DANÇARINA POMPEIANA, cujo tema, a posição das figuras, a precisão do desenho e a técnica, que buscam relembrar pinturas do Quatrocentos, causaram certo estranhamento.
Surpreendeu também a variedade de técnicas que, sem dúvida, indica o que a própria artista entendia por “arte moderna” – não seguir “escola fixa”. [carta, 17 e 18/11/1927. Fundo MA. Arquivo, IEB-USP] Mas a variedade provocou certa oposição de alguns articulistas de jornais. [Cf. M.F, Arte e Mundanismo. Correio de S. Paulo, 12/11/1935]. Apesar dessas críticas, destaque-se que Anita pesquisou técnicas e trabalhou até chegar ao que desejava: ser “sempre livre”, e ter “a mão tão firme” a ponto de fazer “uma linha fina como um cabelo com o pincel sem tremer!” [carta, 14/11/[1927]. Fundo MA. Arquivo, IEB-USP].
Guilherme de Almeida, seu amigo ao menos desde sua exposição de 1917/18, ativíssimo como jornalista e como divulgador de ideias modernas, faz a apresentação no catálogo dessa sua exposição individual:
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1935
O III Salão Paulista de Belas Artes é inaugurado em dezembro desse ano, 1935. Desde esta exposição até a de 1938, os Salões Paulistas foram organizados na Galeria das Arcadas, na rua Quintino Bocaiuva.
Anita Malfatti concorre para ser membro do júri de premiação desse III Salão, pois contava com o apoio de vários artistas. Todavia, seu eleitorado “debandou”, por mexericos – aliás, ardil que todos conhecem – como se lê na reportagem do Correio de S. Paulo:
Anita participa da mostra com uma obra, RETRATO.
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1936
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Em junho desse ano, o Sindicato dos Artistas Pintores de São Paulo é oficialmente reconhecido:
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Nesse ano de 1936, o Departamento Municipal de Cultura promove concurso de livro para crianças.
O livro Cafundó da Infância, de Carlos Lébeis, com ilustrações de Anita Malfatti, obtém o “3º prêmio”, não sendo, então, publicado.
Paulo Bomfim, sobrinho de Lébeis, escreve:
“Passa-se o tempo, com o falecimento do primo Fernando caíram-me nas mãos os originais do Cafundó da Infância com ilustrações de Anita Malfatti, duplo fascínio que une o universo poético de Carlos Lébeis à pintura da grande artista brasileira. [...] O menino octogenário cumpre agora a promessa que fizera à Anita Malfatti e a si mesmo de cuidar um dia da publicação deste livro destinado a encantar seus leitores.”
[VER]: site Paulo Bomfim
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Anita Malfatti faz, em 1936, a capa da revista Teatro Municipal. Por essa época, também ilustra a capa do livro que trata dos parques infantis abertos em São Paulo pelo prefeito Fábio da Silva Prado:
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1937
Em janeiro de 1937, Anita Malfatti compõe o júri de premiação do IV Salão Paulista de Belas Artes, em substituição a Hugo Adami.
Nesse salão, inaugurado em dezembro de 1936, Anita expõe, de acordo com o catálogo, uma pintura, RETRATO.
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Anita Malfatti monta exposição individual no Rio de Janeiro na sede da Associação dos Artistas Brasileiros, no Palace Hotel.
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“A pintora Anita Malfatti foi, talvez, a primeira artista brasileira que aderiu à corrente manifestadamente moderna. [...] Dessa orientação jamais se afastou a sra. Anita Malfatti.
E, como não se deve desprezar o sentimento da sinceridade como expressão de uma arte, temos que louvar a artista nesta sua amostra [...] como uma pintora que sabe o que pretende e o que quer. A sra. Anita Malfatti expõe retratos, paisagens e uma ‘série infantil’.”
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A partir dos títulos da “série infantil”, impressos no catálogo da exposição individual de Anita Malfatti no Rio de Janeiro, é impossível a identificação das obras. Todavia, considerando-se a capa do livro Parques e Jardins e as ilustrações que fez para o livro Cafundó da Infância, pode-se supor que ela tenha exposto trabalhos resolvidos com técnica semelhante à observada naquelas obras. Mas não só, pois, sabendo-se que, de algum modo, a artista procurava produzir desenhos e pinturas que chegassem às crianças, e sabia produzir a partir de técnicas diversas, é provável que não adotasse técnica única.
Como nas demais exposições, Anita recebe elogios, mas também é bastante criticada. Esta opinião desfavorável geralmente ocorre por ela apresentar obras com técnicas diversas e temáticas distintas. Mas nesta mostra a artista também é criticada pelo fato de articulistas verem em seus trabalhos “algo de incompleto” [Fon-Fon, RJ, 16/10/1937], ou por afirmarem que as técnicas empregadas pela artista “fogem ao comum da técnica ditada pelo ‘espírito moderno’”. [Revista da Semana, RJ, 16/10/1937]
Para Anita Malfatti, que domina o traço e várias técnicas, produzir trabalhos com desenho e fatura como os que se encontram nos livros destinados às crianças, pintar de modo a sugerir técnicas quinhentistas ou outras é, sem dúvida, decisão. Não é possível esquecer que a artista defende a liberdade, não a “técnica ditada”. A arte moderna é, para ela, aquela que segue o desejo do artista, suas convicções, sem escolas pré-definidas. A diversidade está contemplada em suas ideias e, como se pode observar nas obras destacadas nesta pesquisa, em seus trabalhos. -
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Escreve Marta Rossetti: “Retrato de Iola Cintra, aluna de Anita Malfatti na época [...]. Tela [...]: a pintora, no final dos anos 30 para os anos 40, teria repintado, modificando totalmente, quanto ao fundo e ao tipo de pincelada, a obra exposta em 1937. [...] Col Georgina Malfatti, SP (1977).” [Cf. MRB, 2. vol., p. 66]
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Anita Malfatti também integra nessa época a exposição da Família Artística Paulista em São Paulo, grupo de artistas que afirmam, em seu primeiro catálogo, serem “sem qualquer preconceito de escola ou tendência”, e que se reuniram por “uma certa afinidade no interpretar, conceber e realizar a arte: afinidade que não se poderia expressar, como é obvio, na semelhança das cores, formas ou volumes, mas nos princípios gerais que determinam o sentido das produções artísticas”.
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Anita Malfatti fala em rádios ao menos em três ocasiões, quando expõe algumas de suas ideias artísticas. Nesse ano de 1937, possivelmente tenha falado duas vezes, quando, após expor suas ideias, divulga a exposição da Família Artística Paulista. Os manuscritos das falas, A Beleza e A Forma e a Cor, transmitidos respectivamente em 5 e 9 de novembro desse ano, encontram-se guardados no Arquivo, IEB-USP.
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No manuscrito da artista intitulado A Beleza, lê-se:
“O ofício do artista é simplesmente o do instrumento transmissor. O artista apanha a beleza com as antenas de sua sensibilidade emotiva, adaptando-a para o instrumento que lhe é familiar nos transmitindo a nova forma que não é mais do que uma pequena amostra do que faz parte da beleza total.”
Dois anos depois, 1939, em correspondência com Mário de Andrade que morava no Rio de Janeiro, Anita Malfatti, após escrever sobre seu futuro projeto de pintar, menciona a ideia do “artista transmissor”:
“Estou pintando sem me preocupar com o resultado do quadro pronto. O resultado deve surgir livre como a própria inspiração. Faço sempre o erro de começar muito livre e depois quero controlar a aparência final. A verdade é que na obra de arte nada nos pertence, somos somente os transmissores da beleza, que coitada vem sempre muito machucada, quando passa por nossas mãos inábeis.” [Fundo MA. Arquivo, IEB-USP]
Mário de Andrade responde que não concorda com a ideia dela, pois o artista “é criador” e não “ ‘transmissor’ de beleza”, e conclui: “criar só pode ser com as próprias forças.”
Em carta sequente a esta de Mário, Anita concorda com o escritor, afirmando ter errado.
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1938
Anita Malfatti integra a Comissão Organizadora do IV Salão do Sindicato dos Artistas Plásticos de São Paulo ao lado de José M. Silva Neves, J. Gonçalves d´Athayde, Waldemar da Costa [Correio Paulistano, SP, 17/7/1938], assim como também participa da exposição [OESP, SP, 3/7/1938]
Em fevereiro desse ano, Alexandre de Albuquerque foi nomeado representante do Sindicato no Conselho de Orientação Artística.
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Há alguns desenhos dessa série “Tabuinha” na Coleção de Artes Visuais do IEB-USP, como o HOMEM COM BURRINHO.
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cartões-convites. Fundo AM. Arquivo, IEB-USP
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1939
Neste ano de 1939 é montado o II Salão da Família Artística. Anita Malfatti integra a mostra expondo duas telas: COMPOSIÇÃO e RETRATO.
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No segundo semestre de 1939 é aberto o III Salão de Maio, na Galeria Itá. Prosseguindo, de certa forma, o caminho do I e do II Salões de Maio, organizados pelo crítico Quirino da Silva, também esse III Salão, promovido por Flávio de Carvalho, oferece algumas conferências, entre as quais, a de Tarsila do Amaral, intitulada A Arte e a Crítica. [O Estado de S. Paulo, SP, 30/7/1939]
Flávio não deu continuidade às palestras após o encerramento do Salão, o que Quirino procurava manter, chegando a promover algumas delas na sede o IHGSP. Todavia, o organizador do III Salão publicou um catálogo, de capa estridente, metálica, no qual se encontram textos de alguns artistas, entre os quais “1917”, texto de Anita Malfatti.
Comentando sobre esse Salão, no qual expôs NU [LA CHAMBRE BLEUE], Anita escreve para Mário de Andrade, admirada com a postura de Sérgio Milliet:
“Pouco estive no Salão de Maio, pois tive que lutar com uma gripe recalcitrante. O caso mais interessante do Salão de Maio foi o Sérgio Milliet se integrar completamente com os artistas plásticos. Achei curioso no início, mas, como os outros, me deixei seduzir e também gosto e admiro o Sérgio. Tem um poder de catequese! ou simpatia sincera? quem sabe!!”
[carta, 5/8/[1939]. Fundo MA. Arquivo, IEB-USP]
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No início desse ano, Anita Malfatti escreveu a Mário de Andrade – carta acima mencionada, na qual ela fala que o artista é “transmissor da beleza” –, contando que gostaria de ter “um Rugendas e um Debret”, pois estava querendo fazer “uns quadros com o sabor daquela gente”. Em 1/4, Mário, então morando no Rio de Janeiro, inicia a carta-resposta dizendo que ao ler a dela: o “mundo [...] se rasgou todo num louco raio de sol”. Mas, em seguida, tece várias críticas à arte de Anita, críticas que são amenizadas com justificativas que passam pelo social e pelas decisões dela própria acerca de seu percurso artístico. O escritor também não deixa de lembrar-lhe os favores que lhe prestou, embora escreva não estar cobrando, ao contrário, afirma: “eu é que lhe devo antes de mais nada o favor da sua amizade feminina, que me foi piedosa em várias horas de meu sofrimento.”
Após escrever que Anita Malfatti é uma das pessoas que mais conhece pintura, acrescenta: “Mas me parece que você se dispersa um pouco muito no meio desses conhecimentos. Quero dizer: em vez de fazer por si, você se propõe a fazer o que conhece. Faz e faz com muita habilidade, mas não é você e não é ninguém. É puro exercício artístico, bem feito, mas de qualquer forma, acadêmico: um saber aprendido de-cor.”
[carta, 1/4/1939]. Fundo AM. Arquivo, IEB-USP]
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Outras colocações duras são enfatizadas nessa carta. Mário de Andrade afirma, inclusive, que se a artista tivesse progredido “naquele destino espontâneo” e enfrentado os “obstáculos”, ela teria sido ela...
Nessa carta que deixa evidente que Mário de Andrade pouco ou nada apreciava a obra de Anita Malfatti, exceto as da época de Nova Iorque, ao terminá-la, para demonstrar sua amizade, o subterfúgio é, sem dúvida, bombástico:
“O que eu lhe digo é desagradável, eu sei. Mas se lembre, Anita, daquele amigo que o Freitas Valle chamou no salão dele, cheio de gente, pra dizer em voz alta: ‘Mário, aqui está o presente que lhe prometi: Anita conseguiu o prêmio de viagem’. E se lembre ainda daquele homem ao qual você mesmo veio dizer que sabia que ele mentira publicamente nos elogios que fizera ao seu Lázaro, na amiga intenção de conseguir alguma coisa, uma compra do Governo, etc. pra você.”
“Sei que vou responder a uma das cartas mais difíceis que respondi na minha vida, por isso estou tremendo e um tanto preocupada”, assim começa a missiva de Anita Malfatti a Mário de Andrade, num domingo de Páscoa, na qual ela diz concordar que o artista não é apenas um “transmissor”. Nesta carta Anita opõe-se a Mário e esclarece como ela ganhou o pensionato artístico:
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Agora vem a coisa brava, coraggio! Eu me encrespo com você, pra me defender, e quando assim o faço, você não acha bom. Muita vez tenho ficado “louca da vida” com suas bobagens. Você ainda não aprendeu que isto não “reféce o amô?”
Nunca fui acadêmica, ouviu, “seu malcriado”? essa conversa mole de “saber aprendido de cor”, de “puro exercício artístico”, “bem feitinho” é literatice sua e nunca “trabalho meu”! Foi uma página de bobagens e nada mais. Se eu quiser fazer um ou mais quadros com o sabor, isto é, “na escola” de um egípcio, grego, flamengo, ou sentimental romântico do Brasil, i. é, o colonial, faço, e nem por isso venho a fazer uma bobagem acadêmica.
Da mesma forma, você pode escrever ou compor música dentro de qualquer época ou escola, sem deixar de ser o “delicioso” Mário de Andrade, mas pra fazer essa mágica, meu caro, você precisa ter em casa a documentação de um “Rugendas ou Debret”! Aliás, sossegue teu coração, eu não consegui os livros e continuo a fazer os 2 quadros como posso, à minha triste moda!
A força criadora, estrepitosa, Mário, não é coisa nossa! Está em todas as sementinhas do mundo, no universo todo, em todas as coisas como em todos os indivíduos. Não é coisa que se encontre em estado latente só nos artistas! Acho uma prepotência pensarmos que possamos ser os únicos míseros privilegiados! Concordo, com você, não somos apenas transmissores, esta força é um dos fatores componentes do nosso ser, e às vezes vem à tona com extraordinário brilho e maravilha. “Que não somos só transmissores”, errei, dou a mão à palmatória.
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A minha ida à Europa foi o resultado de 10 anos de démarches. Freitas Valle nunca acreditou que eu merecesse essa atenção do governo. Disso infelizmente tive provas de sobra. Dr. Eugênio Egas meu padrinho, foi quem falou com D. Sophia de Dr. Washington, quando esse era Presidente de Estado. Ela interessou-se imediatamente pois me conheceu desde criança, já da casa da Baronesa de Piracicaba, mãe dela. Você sabe que somos contra parentes daí o conhecimento. Foi então que recebi dela a promessa dada pelo Dr. Washington em pessoa que a primeira vaga seria minha. Três meses depois você fazia a conferência em casa do Dr. Freitas Valle e aí você viu o anúncio espetaculoso do favor do Governo. Acredito que ele tenha tirado partido da sua boa vontade, como de minha eterna gratidão, mas ele estava cumprindo outras ordens. Eu ignorava a frase dele, como do seu grande desejo que eu partisse para a Europa. Naquele tempo eu ignorava coisas que os anos me ensinaram. Falar nisso, eu quase morri naquela crise sentimental.
Do caso do Lázaro, estou bem lembrada. Foi um elogio desmerecido que você não deveria ter feito. Um dia esse será um grande quadro. O trabalho de certas épocas é às muitas das vezes desequilibrado. Alguns pontos bons, outros muito falhos. Para grandes quadros, é preciso grandes conhecimentos! Povera mé! Esses destinos não parecem estar na minha vontade, Mário! A pintura, é lenta na concepção, morosa na realização e ainda mais na compreensão. Todo mundo pensa que entende de pintura, que erro, heim!
Me custou aguentar que você pensasse tão pouco assim de mim, mas você sabe que não entrego os pontos! Respondi e expliquei o melhor que pude porque “ti voglio bene”.
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Na correspondência entre os dois, várias discussões ocorrem: por vezes, após tecer crítica ou sugerir algo, Mário de Andrade suaviza o tom, dando a entender estar discutindo ideias. Anita Malfatti, por sua vez, entende que as colocações dele são críticas às suas pesquisas artísticas.
Durante o decênio de 1930, até setembro de 1939, a artista e o escritor trocam algumas cartas. No ano seguinte, conhece-se apenas uma, enviada por Anita Malfatti a Mário de Andrade e, em 1944, apenas um bilhete da artista ao escritor.